Última alteração: 2019-09-21
Resumo
Inventado nos anos 1850 pelo francês Édouard-Léon Scott, o fonautógrafo permitiu pela primeira vez a fixação de vibrações sonoras eletricamente transduzidas, configurando-se historicamente como um precursor direto dos diversos aparelhos de gravação e reprodução do som que emergiram subsequentemente (gramofone, telefone, rádio etc.). No entanto, a contrapelo de atribuir-lhe um caráter exclusivamente triunfante e inaugural no que diz respeito a reprodução sonora, podemos investigar como essa tecnologia dialogou com outras concepções e outras formas técnicas de "fixação" de dados sonoros, salientando alguns mecanismos e ideias herdados de outros dispositivos (de automação ou de visualização do som, por exemplo).
Os textos de Jonathan Sterne (The Audible Past: Cultural Origins of Sound Reproduction) e Friedrich Kittler (Gramophone, Film and Typewriter) elaboram diferentes abordagens arqueológicas (conforme o método de Michel Foucault) desse curioso objeto técnico e exploram algumas das pistas que mencionamos acima.
Em Kittler, o caráter atestado pela etimologia do aparelho é posto em primeiro plano, permitindo a exploração do contraponto deste artefato com a partitura musical, já que ambos são máquinas de “escrita dos sons”. A partir da distinção conceitual entre arte e mídia (caríssima a seu pensamento), o autor afirma que a mídia fonautográfica produzia uma escrita dos sons “enquanto tais” (frequências, vibrações), contrapondo-a à partitura musical que, mediada pela grade do simbólico, escrevia apenas relações intervalares baseadas no código musical, convencionalmente estabelecido.
Em Sterne, por sua vez, o fonautógrafo figura como um “artefato cultural” a partir do qual é possível escavar múltiplas camadas da elaboração instrumental e teórica do “próprio som”. Segundo o autor, desde fins do século XVIII, o “som em si” (“sound itself”) se estruturava enquanto domínio singular e autônomo de investigação científica que se desvinculava das instâncias que tradicionalmente submetiam a sua inteligibilidade, como a "música" ou o "discurso".
Desse modo, podemos conceber que as condições de possibilidade dessa escrita “das frequências” podem ser identificadas com a elaboração simultaneamente teórica e instrumental do “som”, que aciona diversos campos de pesquisa experimental (acústica, otologia, psicofisiologia) e uma série de invenções técnicas (como atestam as figuras de Chladni, o estetoscópio e "autômatos" que emulavam a emissão vocal).
Assim, o presente trabalho desenvolve uma articulação entre os autores supracitados, com o intuito de delinear aproximações e tensões entre a proposição kittleriana de um “triunfo da frequência” com a escrita fonautográfica e a abordagem histórica de Sterne sobre a nova elaboração do “som”.
Com efeito, esta arguição explora as possibilidades do “triunfo da frequência” (Kittler) em descontinuidade com a racionalização musical (baseada em intervalos proporcionais), acionando outros campos de investigação e outros artefatos tecnológicos, que abordamos a partir de Sterne. Por essa visada, pretende-se colocar em perspectiva o surgimento das tecnologias de gravação e reprodução sonora, tendo como foco as condições de possibilidade dessa emergência. Como objeto arqueológico, o fonautógrafo permite a legibilidade de diversos campos de racionalização do som, nos remetendo a uma série de implicações entre técnica, sons e escuta humana na modernidade do século XIX.
BIBLIOGRAFIA
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Editora Forense Universitária, 7ª edição, 2008.
KITTLER, Friedrich. Gramophone, Film, Typewriter. Standford University Press, 1999.
STERNE, Jonathan. The Audible Past: Cultural Origins of Sound Reproduction. Duke University Press, 2003.